Qualquer
indivíduo que se proponha a ler o Novo Testamento é comum que inicie pelo
primeiro evangelho, isto é, o evangelho de Mateus. De fato esta afirmação não é
a regra, tendo em vista que cada evangelho e os demais livros da Bíblia têm
autonomia e identidade própria.
Por
outro lado, leitores assíduos da Bíblia, tendem a conhecer os temas e as
ênfases de cada evangelho devido a recorrente meditação. Conhecem as estruturas
dos livros, em que capítulo localiza-se cada tema e, por isso, tendem a
generalização dos textos e das ênfases de cada autor.
Após
a genealogia de Mateus, segue-se a história de Maria e José; história que
também encontramos em Lucas (1.26), mas não encontramos em Marcos e João. No
entanto, é evidente a singularidade de cada evangelho, ou seja, temos duas
narrativas semelhantes, mas com ênfases diferentes. Sendo assim, queremos
chamar atenção para a ênfase de Mateus, com relação à vida de José- pai de
Jesus, na qual não encontramos em Lucas.
Assim
nos diz Mateus: “Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria,
sua mãe, desposada com José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida
pelo Espírito Santo. Mas José, seu esposo, sendo justo e não a querendo
infamar, resolveu deixá-la secretamente. Enquanto ponderava nestas coisas, eis
que lhe apareceu, em sonho, um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi,
não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é do Espírito
Santo. Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará
o seu povo dos pecados deles. Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o
que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá
e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer:
Deus conosco). Despertado José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor
e recebeu sua mulher. Contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um
filho, a quem pôs o nome de Jesus”. (Mat 1:18-25)
As
ênfases em relação ao comportamento de José, não se encontra no evangelho de
Lucas. Assim, cabe ao leitor destes evangelhos perguntar: Por qual motivo isto
acontece? Certamente a resposta é que Mateus tinha muito mais a dizer sobre
José do que Lucas, ou seja, o comportamento de José tinha mais a ensinar a
comunidade de Mateus do que a comunidade de Lucas.
Mateus
escreve a uma comunidade de Judaizantes, isto é, judeus que se converteram ao
Senhor Jesus. Entretanto, ainda era uma comunidade muito influenciada pela
cultura e pensamento judaico. Seu evangelho, e especialmente a narrativa acima,
tem objetivos específicos quando relata que José não havia despojado (relação
sexual) Maria, mas que ela encontrava-se grávida. Sobretudo, quando enfatiza
que José arquitetou um plano para deixa-la secretamente. Portanto, cada ênfase
sobre a vida e comportamento de José carregam objetivos específicos para a
comunidade de Mateus.
A
narrativa diz que a intenção de José era não infamar a mulher que ele amava.
Esta atitude revela uma mensagem brilhante, pois abandonando José sua esposa, a
sociedade não atentaria tanto para o fato de uma jovem “virgem” ter
engravidado, mas atentaria para o fato de um judeu ter engravidado sua esposa e
secretamente abandona-la, demonstrando covardia. Portanto, a intenção de José
era transferir as calunias e condenações que seriam atribuídas a Maria. Mais do
que isso, por uma questão de raciocínio lógico, os judeus concluiriam que Maria
havia traído José com outro homem e, segundo a lei, deveria ser apedrejada e
morta. Assim, com a fuga, José livraria Maria desta condenação.
Portanto,
uma hermenêutica possível para a ênfase de Mateus, seria instruir os
judaizantes para que atentassem para a necessidade de proteção e de amor para
com as mulheres. Numa sociedade patriarcalista e machista, José poderia ser
vítima nessa história; entretanto, sua atitude foi de preservar a mulher que
amava. Sofreria vergonha em prol do amor por Maria.
Ao
sonhar com o anjo do Senhor, José desistiu da fuga; resolveu enfrentar a
vergonha cultural e religiosa em prol da ação e dos planos de Deus. Após ser
constrangido pelo anjo, não hesitou em assumir seu propósito, pois “tudo isto
aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do
profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado
pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)” (Mat 1:22-23). José
aceitou Maria, tomou sobre si a vergonha e não se importou com as possíveis
calunias que seriam desferidas pelos judeus, antes prosseguiu por amor a obra
de Deus e a sua amada. Confiou nas palavras do anjo, e não se importou com o
que a sociedade diria a seu respeito.
Assim
sendo, uma hermenêutica possível em relação a esta ênfase de Mateus, seria
desafiar a comunidade de judaizantes a sofrer a mesma vergonha em prol do amor
por Cristo
e dos planos de Deus. Certamente, estes judaizantes foram envergonhados e
perseguidos pela ortodoxia judaica, e o desafio de Mateus era fazer com que
permanecessem fiéis ao Senhor, mesmo que para isso fossem envergonhados, assim
como foi José.
Os
evangelhos, para nós cristãos, são considerados palavra de Deus. Assim, estas
mesmas ênfases e objetivos de Mateus em relação aos judaizantes, trazem
profundas lições para nós, igreja do Senhor Jesus.
José
tomou sobre si a vergonha para preservar sua noiva Maria. Da mesma forma, a
igreja do Senhor Jesus é chamada nas Escrituras de Noiva do Cordeiro (Ap.19.7;
21.2,9). Também, José ouviu as palavras do anjo de Deus e, por amor ao Senhor,
aceitou os seus planos. Assim, duas perspectivas devem ser objetos de nossa
reflexão:
- · Até que ponto estamos dispostos a lutar e se envergonhar por amor a igreja (noiva de Cristo).
- · Até que ponto estamos dispostos a se envergonhar por amor a Deus e ao seu Reino.
Para
Mateus, a vergonha faz parte da realidade daqueles que amam o Senhor Jesus. Por
outro lado, entende que são “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque
deles é o reino dos céus [...] Bem-aventurados os perseguidos por causa da
justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados são quando, por minha
causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra
vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois
assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós (Mt.5).